quinta-feira, 17 de março de 2011

O furor privatista



Nada houve de mais escandaloso na história econômica do Brasil que a privatização da Companhia Siderúrgica Nacional. Ela foi entregue, num leilão eivado de irregularidades, a um bando de banqueiros por um preço menor que o aço que tinha em estoque e as dívidas por receber. Criada juntamente com a Companhia Vale do Rio Doce, elas nos custaram uma guerra, pois a sua construção foi a condição imposta por Getúlio Vargas para o apoio do Brasil aos Aliados na Segunda Guerra Mundial¹.

Roosevelt cumpriu sua parte, fazendo construir a siderúrgica nos anos de guerra para que fosse inaugurada em 1945. Volta Redonda representou para o Brasil o papel de matriz da industrialização nacional. Assim o foi, apesar da espoliação que sofreu pelo espírito privatista dos que a regeram nos anos da ditadura militar, fazendo-a operar com preços negativos para servir à corrupção de revendedores de seus produtos e para subsidiar a indústria automobilística e a indústria naval.

A Vale, que devolveu ao Brasil o domínio do minério de ferro de Minas Gerais, controlado até então pelos ingleses, cresceu como a maior das empresas mundiais de seu ramo, com um patrimônio superior a 30 bilhões de dólares. Possui, hoje, dois sistemas completos e integrados de mineração-ferroviária-porto, o das jazidas do quadrilátero ferrífero de Minas Gerais e o do complexo de Carajás-Itaqui, que explora a maior jazida de minério de ferro do mundo. Tem, ainda, um sistema próprio de navegação, atua no setor de celulose, conta com uma empresa própria exclusivamente dedicada à pesquisa mineralógica. Participa, também, com outros grupos empresariais nacionais e estrangeiros, em diversas atividades minerais e industriais, destacando-se o manganês, o titânio, o ouro, a bauxita, a alumina e o alumínio. O valor de suas reservas minerais, que já estão sendo exploradas, é superior a 500 bilhões de dólares, seu volume total alcançará o dobro.

Os tecnocratas que ditam a política econômica estão assanhadíssimos, agora, para levar a cabo outra espoliação. Querem privatizar a Companhia Vale do Rio Doce, cujo capital já sofreu uma sangria através de uma manobra de conversão de debêntures em ações votantes que entregou ao setor privado 47% de seu capital. Com a venda de uns 10% mais, o aventureirismo privado dominaria a Vale, apropriando-se da empresa e de suas jazidas de minérios metálicos, cujo valor acerca-se a um trilhão de dólares.

O escândalo dessas dações pode ser medido por um simples balanço da renda que se auferiu das privatizações já realizadas. As operações de privatização da Companhia Siderúrgica Nacional, da Usiminas, da Mafersa, da Usipa e de outras empresas renderam nominalmente 5,2 bilhões de dólares, que custaram efetivamente aos arrematadores a insignificância de 62,4 milhões de dólares, ou 1,2%, porque as pagaram em moedas podres.

Outra empresa cobiçadíssima é a Petrobrás. Ela custou ao Tesouro Nacional 10 bilhões de dólares, dos quais 4 bilhões a ele reverteram. O volume reconhecido, hoje, do seu patrimônio é de 50 bilhões de dólares e o valor de suas reservas de petróleo e de gás é superior a 180 bilhões de dólares. Seu funcionamento como empresa monopolista rendeu ao país uma economia de outros 180 bilhões de dólares, que teríamos pago a mais pelo petróleo que consumimos nessas décadas.

A Eletrobrás, criada em 1954 para libertar o Brasil da infecundidade das empresas privadas, incapazes de gerar a energia requerida para o desenvolvimento do país, tem hoje o patrimônio reconhecido no valor de 100 bilhões de dólares e atende a 75% da população brasileira, com tarifas mais baixas do que a taxa mundial. Seu potencial energético cresceu mais de dez vezes desde que foi criada. Propala-se que os Chicago boys querem arrematá-la por 20% do seu valor, advertindo, eles próprios, que os arrematadores não assumirão nenhum compromisso de construir as novas hidrelétricas de que o país necessita. O Tesouro assumiria o encargo de construí-las, certamente para as entregar, depois, aos buscadores de lucros fáceis.

A Embratel, criada em 1962, foi reestruturada em 1972 para reger o monopólio nacional das telecomunicações. Seu patrimônio, compreendendo os órgãos centrais e as telefônicas dos Estados, é da ordem de 80 bilhões de dólares. O imenso valor de seu monopólio comercial é incalculável. Esse futuro da empresa, muito mais que suas instalações, é o que se quer desapropriar porque ele é tido como um dos maiores negócios que hoje se oferecem em todo o mundo.

O valor patrimonial das empresas citadas é superior a 250 bilhões de dólares e o valor de suas reservas minerais supera um trilhão de dólares. Esses números correspondem a dezenas de vezes mais que todas as inversões de capital estrangeiro no Brasil. Estes fatos demonstram numericamente o tamanho da espoliação que a política da privatização nos propõe. Se chegarem a realizá-la, terão cometido um crime de lesa-pátria, tanto ou mais grave que os dois outros crimes históricos de nossas elites infiéis. O crime de prorrogar a escravidão por meio século mais, depois dela se tornar obsoleta em todo o mundo. E o crime de condenar milhões de lavradores brasileiros a viverem vidas miseráveis e famélicas, por não se consentir nunca que se realizasse aqui a reforma agrária.

Texto extraído do livro intitulado “O Brasil como problema”, do professor Darcy
Ribeiro

¹ Grifos meus

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